O espelho de hoje era caco de vidro até há pouco tempo. O carpete era uma rede de pescador, o vaso de flor já foi lã para estofamentos. Esses são alguns exemplos de reciclagens feitas por empresas engajadas no chamado ciclo fechado, movimento que busca fazer o reaproveitamento dos resíduos do processo produtivo e pós-consumo e reduzir o volume de matéria-prima consumida. O conceito começa a ganhar espaço na pauta da indústria.
Cerca de 18% dos vidros e espelhos fabricados pela americana Guardian do Brasil vêm de resíduos de vidros. A companhia, que tem duas unidades no país desde 1994, há dois anos começou a implantar o know-how trazido da matriz, que há dez anos já tem essa prática. Hoje, das 420 mil toneladas de espelhos e vidros fabricados por ano pela empresa no Brasil, 75,6 mil toneladas vêm de matéria-prima reaproveitada. Trata-se de um exemplo de produto que, depois de usado, volta a alimentar a cadeia de produção e retorna ao mercado como novo. “A nossa meta é passar de 18% para 22% de material reaproveitado ainda em 2014. Os investimentos para isso já estão sendo feitos”, garante Valdir Valderramas, gerente de supply chain da Guardian.
Difundir a política implementada pela companhia passou a ser bandeira da Guardian. “Confeccionamos contêineres e estamos distribuindo no mercado para facilitar a coleta do produto e, com isso, ampliar a captação”, conta.
Outra estratégia que está atraindo um número maior de interessados fica por conta dos benefícios que vão de descontos na compra da mercadoria fabricada pela Guardian até subsídios para o transporte. “Nosso grande desafio é comprar cada vez mais cacos no mercado, reduzindo a quantidade de gás utilizado no processo de fundição. Para isso, decidimos remunerar o nosso cliente pelos cacos que nos disponibiliza, fornecendo descontos nos nossos principais produtos”, diz.
Os caminhoneiros responsáveis pelo frete também saem ganhando. “Os caminhões que transportam os produtos dos nossos clientes já se acostumaram a chegar carregados de cacos porque sabem que terão os custos do frete subsidiados. Eles nos trazem matéria-prima e levam nossos produtos. Com isso, recebem desconto suficiente para zerar os gastos com a logística”, acrescenta.
A multinacional americana Interface do Brasil, fabricante de carpetes, já adotou essa política há anos e tem planos de avançar. Claudia Martins, diretora da Interface no Brasil, diz que a empresa foi uma das pioneiras em criar um programa de resíduo-zero, quando, em 1994, lançou o Mission Zero. “Na época, a Interface traçou a meta de chegar em 2020 com 100% do ciclo fechado dentro das unidades nos Estados Unidos, Europa, Ásia e Austrália, evitando a extração da matéria-prima”, afirma. “Desde 2005 já recuperamos 450 mil toneladas de carpetes velhos no mundo. Acordamos com o cliente que no momento em que não for mais usar o carpete que nos chame para retirá-lo. É um processo pelo qual a própria área comercial se responsabiliza”, conta.
Esse volume reaproveitado significa uma enorme vantagem. “Entre 2005 e 2013 já contabilizamos uma economia de U$ 600 milhões entre redução no volume de água e de energia nas nossas seis plantas fabris”, detalha.
No Brasil, que comercializa o produto importado, o processo de ciclo fechado começou há cerca de dois anos. “Recolhemos cerca de 30 mil m2 de carpete por ano no mercado brasileiro, para 700 mil m2 comercializados”, diz.
Em um mercado cujo aumento de vendas ficou na casa de 20% anuais até 2011 e cresce hoje 6%, ainda há muito produto a ser recolhido. “Hoje já percorremos 75% do nosso caminho, que quer chegar em 2020 com zero de impacto ambiental. É mais difícil porque temos que aliar todo ciclo fechado, ou seja, não extrair matéria-prima virgem da natureza, incorporar seu produto e continuar sendo fortes em design, além de não perder no desempenho”, diz.
Na visão de Claudia, o estágio em que a empresa se encontra hoje é o mais difícil. “Esses 25% finais demandam um esforço maior. Por isso estamos em um projeto, há dois anos, no qual identificamos que a rede de pesca que a comunidade de pescadores utiliza é o mesmo nylon da fabricação do carpete; um segundo projeto foi montado para captação desse material”, diz.
O plano foi implementado inicialmente nas Filipinas. “Recolhemos as redes e enviamos para o nosso parceiro de fios transformá-los em nylon para fabricação de carpete. Estamos buscando fontes para que a empresa tenha 100% de matéria-prima reciclada nos nossos produtos até 2020”, completa, através de uma parceria selada com a Sociedade Zoológica de Londres. “Durante o projeto piloto do programa, mais de uma tonelada de redes de pesca foram recolhidas para a fabricação das peças. Com esta ação de reciclagem foi possível remover o lixo marinho, além de empregar pessoas das aldeias locais, incluindo 280 famílias socialmente vulneráveis, que ajudaram na limpeza”, relata.
Diógenes Del Bel, diretor presidente da Associação Brasileira de Empresas de Resíduos (Abetre), diz que apenas uma pequena parcela do setor industrial realmente tem esse foco e que razões não faltam para emperrar a política. “É difícil dar esse passo dentro de uma economia sujeita a uma forte competição internacional. Hoje, assistimos às nossas indústrias sofrendo restrições perante a concorrência internacional e o ciclo fechado, às vezes, pode representar um custo maior ou menor, interferindo na competitividade do setor”, diz. “É preciso combinar as duas coisas: o estímulo à sustentabilidade e também olhar a questão do estímulo econômico para viabilizar essa questão da competitividade.”
Outra iniciativa é da fabricante de móveis francesa Ligne Roset. Antoine Roset, vice-presidente executivo da marca, diz que aos poucos vê seu projeto ganhar corpo dentro do processo de fabricação denominado ciclo fechado.
Claudia Martins: “Desde 2005 recuperamos 450 mil toneladas de carpetes” (Foto: Divulgação / Divulgação)
Fonte: Valor Econômico