Aterro de Goiânia precisa ser transformado o mais rapidamente possível em centro de tratamento de resíduos | Foto: Fernando Leite
Elder Dias
17 dezembro 2023
Há um pouco de cada goianiense naquele monte que se ergueu ali, na Chácara São Joaquim, saída para Trindade pela GO-060, a menos de cinco quilômetros do trevo do Terminal Padre Pelágio, o marco oeste da capital.
Lá está o vidro do perfume usado por ele e o brinco de latão dela, peças que presenciaram o inesquecível primeiro encontro; o pneu que furou na viagem do casal em lua de mel e que depois foi gasto até a carcaça; aquele celular antigo que gravou a cena do parto do primogênito; as caixas de sabão em pó que lavaram o uniforme escolar das crianças; os cacos do prato quebrado pelo desajeitado namorado da filha do meio, em seu almoço de apresentação à família; os convites da formatura do caçula que não chegaram a ser entregues; e até as recentemente dispensadas miniaturas de heróis de plástico made in China, primeiro presente do netinho que chegou já faz dois anos.
Entre o encontro do brinco com a colônia e o enfado do bebê com seus bonecos, passaram-se 30 anos e inúmeras histórias que, além da memória, agora só estariam ao alcance de uma arqueologia escatológica. Algo como na clássica crônica O Lixo, em que Luis Fernando Verissimo já deixava expresso em linhas curtas como aquilo que a gente joga fora conta tanto da vida de cada um de nós.
Inaugurado em 1993, o Aterro Sanitário de Resíduos de Goiânia não conta apenas histórias particulares, belas ou tristes, belas e tristes, trágicas, fantásticas, singelas. Ele também resume a trajetória de Goiânia desde a cidade planejada que se pretendia para 50 mil pessoas até a metrópole caótica que se ordena de acordo com as decisões do mercado imobiliário. Também sintetiza, na ocupação acelerada e volumosa de seus quase 500 mil metros quadrados – uma área de quase 80 campos de futebol –, o comportamento social de toda uma população. Memórias materiais acumuladas em décadas e décadas.
Deixando agora as reminiscências de lado, o que sobra é algo bem prático e pragmático: o goianiense médio ainda não tem o costume de cuidar de seu lixo. Se os hábitos fossem outros, o vidro (do perfume), o metal (do brinco), a borracha (do pneu), os componentes eletrônicos (do celular), o papelão (das caixas de sabão), a porcelana (do prato), a embalagem (do convite) e os plásticos (dos brinquedos) não estariam soterrados na montanha de resíduos – teriam se transformado em matéria-prima para fabricar peças de outras histórias.
Na verdade, dos 30 anos de idade do aterro, metade foi praticamente sem alívio nenhum. É que só em 2008, o então prefeito Iris Rezende institui o primeiro programa oficial de coleta seletiva na cidade, que começa de maneira experimental, nas ruas do Jardim América. Antes, fora o trabalho artesanal dos coletores e suas poucas cooperativas, e à parte também o que descia pelas enxurradas, entupia bueiros e poluía os córregos e rios da capital, praticamente todos os rejeitos e detritos produzidos inchavam a aumentar o monte da Chácara São Joaquim.
Mas, se com a instalação do aterro a situação ainda tinha muitos problemas, antes dele o quadro era muito pior. Como relata o engenheiro Diógenes Aires, autor do livro Aterros de resíduos: o uso de ferramentas de avaliação como apoio decisório para a reabilitação ambiental – teoria e prática (Appris, 2021, 339 p.), da fundação de Goiânia até 1978 – portanto, durante quatro décadas e meia – o que existiam pela capital eram vários pontos de descarga clandestina de resíduos. “Só em 1979 começou-se a disposição na área atual na GO-060”, conta Diógenes.
De 1979 a 1993, o ponto próximo à rodovia foi o grande lixão da cidade. É quando, então, o local ganha o “status” de aterro sanitário. “Dá-se a recuperação do lixão com a implantação de um aterro sanitário licenciado”, relata.
Dois desafios: licença do aterro e coleta seletiva
Mas qual a diferença entre lixão e aterro? Explicando grosso modo, é a mesma entre “deixar jogado” e “fazer manutenção”. Em um aterro existem técnicas de manejo que envolvem questões ambientais e de engenharia; o lixão é o mero local de despejo de resíduos diversos. O trabalho em um aterro reduz a poluição e evita proliferação de doenças e seus agentes, além de prevenir acidentes que poderiam causar tragédia, por causa da formação de gases do material em decomposição.
Portanto, 1993 marca um avanço na política de resíduos sólidos na capital: o lixão vira aterro. Quinze anos depois, Goiânia começou a engatinhar na coleta seletiva. O então prefeito Iris Rezende – que, naquele ano, concluía seu segundo mandato à frente da capital (o primeiro fora de 1966 a 1969), de “volta às origens” depois de ter sido governador e senador – lançava o programa de coleta de lixo reciclável. Tudo se restringia a um projeto piloto nas ruas do Jardim América, um dos bairros mais populosos e extensos. Pouco a pouco, a coleta foi sendo ampliada para atender mais regiões, até alcançar toda a capital.
Em 2008, porém, já haviam decorridos 23 anos desde a primeira experiência do tipo no Brasil, que teve lugar em Niterói (RJ), em 1985. A primeira capital com um programa de coleta para a atividade seria Curitiba, em 1989.
O que há hoje em Goiânia, claro, traz avanços. Mas avanços modestos. Há dois desafios que se entrelaçam sobre o tema, um em consequência do outro: a coleta seletiva ainda bastante aquém da melhor eficiência leva ao acúmulo de resíduos no aterro sanitário. E uma notícia preocupante é que um estudo concluído neste ano prevê que, na melhor das hipóteses, a capital esgota a capacidade do aterro em 17 anos.
Quem sabe bem de todo esse processo é o promotor Juliano de Barros Araújo, titular da 15ª Promotoria de Justiça e do Núcleo de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público de Goiás (MPGO). Dentro de sua área de atuação, a luta pela aplicação em Goiânia da Lei 12.305/10, que estabeleceu prazos para a implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, se tornou uma novela.
Em 2007, o município assumiu a gestão do aterro, que ficou sem licença ambiental em 2011 e voltou a ser considerado, em tese, um lixão, por não cumprir as normas legais. Em 2014, segundo o promotor, foi impetrada uma ação para pôr fim à situação e adequar o local à nova política de resíduos: o aterro sanitário da capital precisava ser transformado em um centro de tratamento e disposição final de resíduos sólidos (CTDRS).
Em 2020, enfim, houve a assinatura de um termo de ajustamento de conduta (TAC) que selou acordo entre Prefeitura e MPGO para a execução do projeto, que incluía a realização do estudo, feito pela empresa paulista Fral Consultoria e entregue à Prefeitura e seus órgãos envolvidos na questão – Agência Municipal de Meio Ambiente (Amma), Companhia de Urbanização de Goiânia (Comurg) e Secretaria de Infraestrutura Urbana (Seinfra).
Nesse centro (CTDRS), conforme explica o promotor Juliano de Barros Araújo, deverão ser construídas todas as estruturas que deem suporte às áreas de triagem, compostagem, aproveitamento do gás, entre outras. “Ocorre que, se tudo for cumprido nos prazos e com o manejo ideia, o aterro teria, ainda, essa sobrevida de 17 anos. É um tempo muito curto”, conclui.
A solução passa por alguns passos. Um deles foi costurar um acordo com a Prefeitura, que envolve a retirada da gestão do aterro da Comurg e fazer licitações tanto para um novo gestor como para as obras necessárias à transformação para CTDRS. “Durante um prazo de dois anos de vigor dessa licitação, a Prefeitura vai fazer um estudo para concessão à iniciativa privada”, explica Juliano.
Outro passo é que, nesse período, haverá a destinação de 40% do material coletado para aterros privados em outros municípios, visando minorar o impacto na capital. Tudo para garantir a maior vida útil possível ao atual aterro.
A própria estrutura da Prefeitura admite que a situação é limite. Segundo o estudo da Fral Consultoria – e informação corroborada pela Amma –, a vida útil do Aterro Sanitário de Goiânia é de aproximadamente sete anos, se abranger apenas a disposição de resíduos sólidos da classe IIA (os que possuem propriedades biodegradáveis, combustíveis ou são solúveis em água, considerados não inertes). Esse seria o “lado negativo da janela” do tempo para a questão. “Para que o aterro tenha uma vida útil significativa [de 14 a 17 anos], é preciso concretizar investimentos na usina de compostagem e usina de triagem”, diz a agência, em nota.
O TAC com o Ministério Público prevê um investimento de R$ 33 milhões. É um volume de recursos que pode, se efetivado, revolucionar a epopeia do “lixo” (como se acostumou a denominar os resíduos sólidos) na cidade. A utilização do gás produzido no local, uma coleta seletiva que seja a mais eficiente possível, uma cadeia produtiva que organize todos os envolvidos – desde o cidadão ao fazer descarte, passando por coletores, cooperativas e operadores do aterro “promovido” a centro de tratamento de resíduos –, tudo isso pode dar novo sentido à sustentabilidade na capital, deixando Goiânia, pelo menos nesse aspecto, mais transformadora de sua própria história.