CORREIO BRAZILIENSE – 26/06/2024

Pedro Maranhão, presidente da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema)

Não há a menor dúvida sobre a importância da Reforma Tributária para reduzir os custos que pesam sobre a economia brasileira. No entanto, apesar das boas intenções de equalizar o caótico sistema de tributação no país, alguns setores essenciais para a população acabam sendo penalizados de maneira injusta e incoerente. Por que, por exemplo, aumentar pesadamente os tributos que incidirão sobre serviços que protegem a saúde pública e o meio ambiente enquanto serviços médicos e farmacêuticos recebem tratamento tributário mais justo? Evitar uma doença não é tão ou mais importante do que tratá-la?

A Emenda Constitucional nº 132/2023 (Reforma Tributária), aprovada no fim de 2023, ficou silente sobre as desonerações do setor de saneamento básico, que inclui um amplo conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais para a limpeza urbana, manejo e tratamento de resíduos sólidos, além do tratamento de água, coleta e tratamento de esgoto e gestão das águas pluviais das nossas cidades. A carga tributária do setor de resíduos, por exemplo, que hoje varia entre 8,65% e 14,25%, passaria a ser definida pela alíquota padrão, podendo superar os 27%. O processo de regulamentação da emenda constitucional em curso no parlamento é, portanto, oportunidade única para que o setor de resíduos sólidos e de saneamento básico seja reconhecido como essencial para a saúde pública.

O texto da regulamentação encaminhado pelo governo por meio do Projeto de Lei Complementar nº 68/2024 reconhece o regime tributário específico para o setor de saúde, porém focado em atividades de clínicas, hospitais e farmácias. Isso subverte os valores da promoção da saúde pública a partir do correto manejo dos resíduos sólidos, que passaria a ser visto como um serviço qualquer, em nada diferente de serviços de salões de beleza, lavanderias ou entretenimento.

Todos sabemos que, sem saneamento adequado, não há política de saúde efetiva. O setor de resíduos sólidos é fundamental para a saúde pública. E, quando falamos em resíduos sólidos, o Brasil ainda apresenta alguns cenários medievais, pois, segundo estimativas da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema), o país tem cerca de 3 mil lixões, que afetam a saúde de milhões de pessoas e continuam recebendo quase 40% de todo o lixo produzido no Brasil. Além disso, cerca de 9% da população não conta sequer com a coleta de resíduos.

Moradores dos arredores dos lixões e catadores são os mais afetados por doenças, mas não são os únicos, pois os danos provocados pelos depósitos ilegais e pela falta de coleta de resíduos podem alastrar-se por muitos quilômetros. Entre as doenças que podem ser disseminadas pela gestão inadequada de resíduos, estão velhas conhecidas, como dengue, malária, zika, diarreias, leptospirose e várias infecções respiratórias e de pele.

Em termos puramente ambientais, o chorume formado pela decomposição da matéria orgânica em depósitos de lixo a céu aberto contamina o solo e as águas subterrâneas, além de rios e lagos das proximidades, envenenando poços e fontes usadas rotineiramente por incontáveis pessoas e animais. A atmosfera, por sua vez, sofre os impactos da emissão descontrolada de metano, um gás até 28 vezes mais poluente do que o gás carbônico e um dos mais prejudiciais para o aquecimento global e as mudanças climáticas.

Estudo divulgado pela International Solid Waste Association (ISWA) atestou que o tratamento de doenças relacionadas ao descarte inadequado do lixo custa cerca de US$ 370 milhões por ano ao sistema de saúde pública do Brasil. O levantamento levou em consideração o impacto dos milhares de lixões existentes no país e constatou que mais de 1% da população desenvolve doenças diretamente relacionadas ao descarte irregular de resíduos. Em números atuais, isso representaria mais de 2 milhões de pessoas com a saúde prejudicada.

Desde 2010, com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), todo um arcabouço legal foi construído para acabar com esse panorama sombrio e todos os lixões do país deveriam ser erradicados até agosto próximo. Como explicar, então, que a política fiscal vá na contramão dessas políticas públicas? Lamentavelmente, vemos, neste momento, o Estado contrapondo-se ao próprio Estado! Podemos nos perguntar como será o desenvolvimento do setor de resíduos, que já agoniza, quando a carga tributária for duas vezes maior.

A Emenda Constitucional nº 132/2023, que deu origem à nossa esperada Reforma Tributária, já citava, em seus princípios, a saúde e o meio ambiente como prioritários para concessão de incentivos e elaboração de políticas tributárias. O processo de regulamentação da emenda constitucional é uma oportunidade única de colocar a teoria em prática, evitando, assim, riscos inimagináveis para o futuro da nossa nação.

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2024/06/6885130-reforma-tributaria-e-saude-melhor-prevenir-ou-remediar.html