FOLHA DE SÃO PAULO – 27/07/2024
Cerca de 1 milhão de brasileiros sobrevivem da coleta e triagem de resíduos recicláveis. São em sua maioria mulheres, que encontram nessa atividade incerta, precária e largamente informal um meio de garantir receita em contextos de extrema vulnerabilidade.
“Nenhum catador vira catador porque é um ambientalista. É a fome e a miséria que fazem com que você perceba a riqueza que o lixo tem”, afirma Telines Basilio do Nascimento Junior, 59, o Carioca, que viveu 12 anos em situação de rua, como carroceiro, e hoje preside uma das maiores cooperativas de catadores do país, a Coopercaps, na zona sul de São Paulo.
Ao mesmo tempo, catadores são responsáveis por quase 90% dos resíduos sólidos urbanos que chegam à indústria recicladora, segundo dados da Associação Nacional de Catadores (Ancat) que espelham as estatísticas de setores recicladores.
“Tem quem ache que catador é o resto do resto, mas prestamos um serviço ambiental essencial”, avalia Aline Sousa, 34, diretora e presidente da Centcoop, uma das maiores centrais de cooperativas de catadores do país, no Distrito Federal.
Foi ela quem passou a faixa para o presidente Lula (PT) na cerimônia de posse na falta do antecessor, Jair Bolsonaro (PL), que havia partido para os EUA dias antes. A simbologia da cena deu relevo a essa pauta socioambiental, que tem recebido atenção do governo federal.
Em julho, foram anunciados mais de R$ 400 milhões em programas de incentivo à reciclagem e à estruturação de cooperativas e cadeias de coleta. No Brasil, apenas 1 a cada 3 municípios têm algum tipo de coleta seletiva, e o percentual de materiais recicláveis não passa de 4% dos resíduos sólidos urbanos (RSU) do país. A média global é de 19%.
“A luta é para iluminar o trabalho dos catadores e fazer o poder público entender que dá para oficializar esse trabalho depois de tantos anos de invisibilidade”, diz Anne Caroline Barbosa Martins, 32, a Anne Catadora, que produz conteúdo sobre o cotidiano dos autônomos e sobre reciclagem para mais de 400 mil seguidores
Estima-se que a maioria dos catadores seja composta de autônomos, ao mesmo tempo em que cresce o número de cooperativas. Informações da Ancat contabilizaram, em 2022, quase 3.000 delas, com faturamento de R$ 1,63 bilhão naquele ano –quase o triplo de 2019, quando as organizações não passavam de 1.900.
Apesar do crescimento de iniciativas, a estruturação do setor ainda é uma promessa. Apenas 1 a cada 4 cooperativas do país atua no mercado de créditos de logística reversa –determinação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), de 2010, que requer das empresas a recuperação dos resíduos gerados por seus produtos e seu retorno à cadeia produtiva.
A Lei de Incentivo à Reciclagem (LIR), aprovada em 2021 e regulamentada por decreto no início do mês, deve injetar recursos em capacitação, formalização e infraestrutura de cooperativas. Ela é de autoria do deputado Carlos Gomes (Republicanos-RS), ele mesmo um ex-catador de lixões de Senhor do Bonfim, no interior da Bahia, onde cresceu.
Para ilustrar a diversidade da categoria e suas potencialidades, a Folha conta a história do deputado Gomes, da divulgadora Anne, dos gestores Aline e Carioca e da influencer Laura, todos catadores ou ex-catadores que fomentam a educação e a informação sobre o tema.
CARIOCA, 59: “A LUTA É PARA RECICLAR VIDAS”
Há mais de 35 anos no ramo da catação, Carioca, ou Telines Basílio do Nascimento Junior, 59, costuma dizer que “a reciclagem do lixo é um detalhe”. “A gente luta para reciclar vidas, assim como a minha vida foi reciclada.”
Presidente de uma das mais longevas e bem-sucedidas cooperativas do país, a Coopercaps (Cooperativa de Coleta Seletiva Capela do Socorro), Carioca gerencia 353 cooperados e duas centrais mecanizadas de triagem de resíduos de São Paulo, além da sede da organização e cinco filiais na zona sul da capital paulista. A receita da organização em 2023, diz, foi de R$ 18 milhões.
“Trabalhamos com jovens de primeiro emprego porque, se não adotar esses meninos, a bandidagem adota primeiro. E também com egressos do sistema prisional, que pagaram pelos seus erros e, se não tiverem oportunidade, vão errar de novo”, exemplifica.
Nascido em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Carioca desembarcou em São Paulo com pouco dinheiro, uma dependência química e o sonho de arranjar emprego. Em poucos meses, não tinha mais recursos para pagar a pensão e foi para a rua.
“Na primeira noite, desesperado e chorando, um rapaz se aproximou e disse que me ensinaria a garimpar”, lembra. Na manhã seguinte, foi levado a um ferro velho onde deixou seu documento para pegar uma carroça.
Passou os 12 anos seguintes como carroceiro em São Paulo. “A gente vai sobrevivendo daquilo que as pessoas chamam de lixo. Encontra uma blusa aqui, um sapato ali, e garimpa o que tem valor agregado para vender ao ferro velho.”
Contratado por um sucateiro como gerente, ganhou um teto e pôde organizar a vida. Formou uma primeira cooperativa, com um grupo de nove catadores e, por meio de um programa da prefeitura, em 2003, cofundou a Coopercaps. Um convênio com a gestão municipal lhes garantiu galpão, esteira, prensa, balança, empilhadeira elétrica, uniforme e equipamentos de proteção individual para o trabalho.
Carioca fez faculdade de gestão ambiental e pós-graduação em gestão de projetos. Aos poucos, criou outros serviços complementares à triagem e separação da cooperativa.
A Coopercaps tem trabalhado com empresas cujos produtos têm embalagens problemáticas para estudos de mudança no seu design e composição que facilitem sua reciclagem. “Esses resíduos devem voltar para a cadeia produtiva. E é pelas mãos dos catadores que fazemos essa economia realmente circular.”
ALINE, 34, PASSOU A FAIXA A LULA: ‘RESGATE DA NOSSA PRÓPRIA VIDA’
Ainda menina, aos 14 anos, Aline Souza, 34, começou a ajudar a avó no trabalho de coleta de materiais recicláveis em Taguatinga, no Distrito Federal, onde vivia com os pais e irmãos, em barracas, numa ocupação.
Quase 20 anos depois, ela passava a faixa presidencial para Lula durante a cerimônia de posse à qual faltou o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Nos tempos de catação, a família foi orientada a formar uma cooperativa e nasceu a Reciclo. Seus trabalhadores foram contemplados por um projeto de moradia da Caixa Econômica Federal, e, com um teto, a família pôde se dedicar melhor à Reciclo.
A cooperativa passou a integrar a Centcoop, uma central de cooperativas do DF, na qual Aline ingressou como secretária-geral, em 2012. Desde 2015, é a presidente da entidade.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe a faixa presidencial da catadora Aline Souza durante a cerimônia de posse no Palácio do Planalto
Responsável por uma central de 700 catadores, em que mais de 70% são mulheres, a Centcoop recicla 40% dos resíduos do DF e presta serviço de coleta seletiva em 15 cidades da região.
“Por mais que as pessoas invisibilizem esse serviço e as pessoas que atuam nele, a gente resgata a nossa própria vida e outras vidas junto com a gente por meio da reciclagem”, afirma. “É um coletivo, e um ambiente acolhedor, porque essas são pessoas que foram excluídas de uma oportunidade profissional e que encontram algo para elas na reciclagem.”
LAURA, 62, RECICLADORA E INFLUENCER: ‘CAÍ E LEVANTEI VÁRIAS VEZES’
Laura da Cruz, 62, já tinha atuado na construção civil, como auxiliar de enfermagem e como socorrista da Cruz Vermelha no Pará, onde nasceu, quando se mudou para São Paulo, atrás de um novo trabalho para ajudar financeiramente filhas, netos e bisnetos.
Chegou à capital paulista há dez anos e descobriu que a promessa de hospedagem de uma conhecida havia sido retirada. Decidiu ficar no saguão do aeroporto de Guarulhos, onde, conta ela, passou fome e recebeu todo o tipo de proposta.
Até que um casal, irmãos de fé evangélica, a levou para uma cooperativa de reciclagem. “Fiquei entusiasmada, mas o serviço foi puxado demais”. Com dor nas costas, voltou ao saguão do aeroporto.
Depois de um mês, decidiu se mudar para uma pensão e, num aviso de parede, descobriu um recrutamento para trabalhar com reciclagem. No dia seguinte, estava na lida.
De uma cooperativa a outra, Laura passou a trabalhar no Recircular, espaço que recebe materiais dentro da organização Pimp My Carroça, que desenvolve ações criativas e colaborativas para a valorização de catadoras e catadores.
“Caí e levantei várias vezes. E foi graças ao Pimp My Carroça e a Deus que eu consegui comprar a minha casinha”, comemora Laura, entre lágrimas.
É no Recircular que Laura ensina aos novatos os macetes da identificação e separação de materiais. “Trabalhar com reciclagem é algo com o que me identifico. Para mim é um orgulho, uma dádiva que Deus me deu, poder ajudar os irmãos a trabalharem cada vez melhor.”
Com colaboradores da ONG, Laura começou a gravar vídeos para redes sociais explicando quais materiais são ou não reciclados na prática. “Eu passo as informações para as pessoas do modo mais fácil possível para que elas aprendam e valorizem os catadores. Eu senti na pele, eu dormi na rua, eu sei o que é ser humilhada, ser invisível. Hoje eu sou visível. Mas não quero ser conhecida. Quero que conheçam os catadores.”
ANNE CATADORA, 32, PRODUTORA DE CONTEÚDO: ‘SE EU ENSINAR A RECICLAR, NINGUÉM PODERÁ DIZER QUE NÃO SABE’
Designer gráfica de formação, nascida no interior de Mato Grosso do Sul, filha de um casal de professores de educação física, Anne Caroline Barbosa Martins, 32, conta que entrou no ramo da reciclagem “bem por acaso”.
Aos 25 anos, migrou para São Paulo “em busca de uma vida melhor”. Foi morar num abrigo enquanto procurava emprego, e lá conheceu seu marido, Lucas Martins da Silva, 26, à época usuário de crack.
“Comecei a usar crack também, e ele me ensinou sobre reciclagem. Trabalhei com ele para sustento do vício e fomos para a rua, onde pude refletir sobre as situações que eu via no dia a dia”, conta. “Aquilo foi criando uma semente de inconformidade com as injustiças e vulnerabilidades diárias a que os catadores estavam expostos.”
A descoberta de uma gravidez afastou o crack da vida do casal. Buscaram um lugar para morar com a ajuda da família de Lucas, mas veio a pandemia e a situação apertou. A necessidade, conta, a fez começar a postar vídeos nas redes sociais.
“Apesar da nobreza deste trabalho, eu tinha vergonha de mostrar que eu era catadora, porque a minha rede tinha meus parentes e contatos da minha cidade natal, que não sabiam do que vivia em São Paulo. Achei que isso poderia ser visto como um atestado de fracasso”, diz a mineira, que acabou conhecida como Anne Catadora nas redes.
Hoje, tem quatro e-books lançados e mais de 400 mil seguidores. No seu perfil, Anne trata do descarte correto de resíduos, do seu cotidiano e do dia a dia dos catadores, denunciando discriminações e apreensões de carroças, das quais a Prefeitura de São Paulo, por meio de nota, nega ser a responsável.
“Eu via tanto resíduo descartado incorretamente e que, do contrário, poderia facilitar tanto o trabalho dos catadores, que pensei: ‘Se eu ensinasse as pessoas como fazer, ninguém poderia dizer que não sabe'”, afirma
O retorno imediato de seus primeiros vídeos foi de espanto das pessoas diante das informações que Anne trazia. “Eu percebi que muitos hábitos eram fruto de falta de informação mais do que por falta de interesse. Entendi a importância de criar conteúdos sobre o tema.”
Da catação das ruas, Anne gostaria mesmo é de dar um tempo. “Depois de dez anos, sinto muitas dores no corpo.”
GOMES, 52, DEPUTADO FEDERAL: ‘INVENTEI MEUS BRINQUEDOS COM O LIXO’
Passar pelo trabalho de reciclagem é algo que marca o indivíduo para o resto da vida. A avaliação é do baiano Carlos Gomes, 52, que aos 10 anos de idade começou a trabalhar como catador no lixão de Senhor do Bonfim (BA).
“Éramos nove irmãos, meu pai ganhava um salário e meio. Eu me agarrei naquilo que estava à disposição: lixo”, conta ele. “Eu ia para o lixão com um saquinho de ráfia nas costas para recolher os materiais e juntar algum recurso para auxiliar na aquisição de material escolar. Não tinha consciência de sustentabilidade, era sobrevivência.”
Para ele, há um aprendizado mais profundo quando se lida com o que foi descartado. “A reciclagem nos ensina a valorizar as coisas, a racionalizar as coisas e a ter criatividade para reutilizá-las. Foi com o lixo que inventei os meus brinquedos”, afirma.
Numa primeira viagem de férias escolares, aos 13 anos, ao pisar no Rio de Janeiro, decidiu ficar. Trabalhou na capital fluminense como office-boy e ambulante. Entrou para a Igreja Universal do Reino de Deus, virou pastor e fez missões em diversas partes do país.
O deputado federal Carlos Gomes (Republicanos-RS), que aos 10 anos recolhia materiais recicláveis no lixão de Senhor do Bonfim, na Bahia, para poder comprar material escolar
No Rio Grande do Sul, foi convidado a se candidatar a deputado estadual em 2006. Eleito para dois mandatos consecutivos, Gomes está hoje licenciado de seu terceiro mandato como deputado federal, pelo Republicanos.
“Chegando à Câmara, por dever de consciência, de história, e por ver tantas pessoas que sobrevivem da coleta de resíduos recicláveis, adotei como bandeira do mandato a reciclagem”, discursa ele, que é autor da Lei de Incentivo à Reciclagem, regulamentada em julho.
“A lei vai ajudar muito, mas precisamos que a reforma tributária dê um tratamento diferenciado para toda a indústria que produz com matérias-primas recicladas”, afirma. Segundo o deputado, todo produto produzido com insumos reciclados tem preço adicional de cerca de 30%. “Não haverá competitividade possível com as matérias-primas virgens se não se reduzir a carga tributária da cadeia que gera insumos reciclados.”
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Fonte: Folha de São Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/07/de-influencer-a-deputado-conheca-historias-de-catadores-de-reciclaveis-do-brasil.shtml