O novo Marco Legal do Saneamento Básico, consubstanciado no Projeto de Lei 4.162/2019, de iniciativa do Poder Executivo, tinha tudo para promover expressivo aprimoramento nos serviços de água e esgoto, limpeza urbana, coleta e destinação correta dos resíduos sólidos. No entanto, aos “47 do segundo tempo”, uma inoportuna emenda foi acatada no substitutivo do relator da matéria na Câmara dos Deputados, o parlamentar Geninho Zuliani (DEM-SP). Os resultados são danosos, pois fica excluído dos principais avanços tudo o que se refere ao lixo.
Para tornar clara a gravidade da mudança e suas consequências negativas ao meio ambiente e à sociedade, é importante entender como funciona atualmente a delegação dos serviços. O Poder Público pode optar pelo modelo denominado contrato de programa. Tal modalidade permite que empresas estatais sejam contratadas sem licitação e, portanto, sem a saudável concorrência privada. Trata-se de um verdadeiro convite ao clientelismo e ao fisiologismo, que parecem sobreviver ao imenso esforço dos brasileiros em favor do compliance, ética e transparência.
Pois bem, o grande aprimoramento do novo Marco Legal seria justamente ampliar a participação do setor privado na prestação desses serviços, com a obrigatoriedade de licitações e o fim da modalidade de contratos de programa, não apenas no que diz respeito a um município ou Estado, como também a consórcios entre dois ou mais entes federados. Seria! Não é mais! Explica-se: o malfadado substitutivo acolhido por Geninho Zuliani restringiu tais avanços à água e esgoto, mantendo a limpeza urbana, coleta e destinação de resíduos sólidos na obsolescência da lei atual. E fez isso sob o mais requintado estilo da burocracia e do ato de legislar dissuasivos, num intrincado jogo de citações de leis, artigos e incisos que obscurece a questão e deixa pouco transparentes os reais danos.
Em numerosos casos, municípios continuarão mantendo ineficientes estruturas próprias de coleta e destinação de resíduos ou “fingindo” que pagam pouco pelos serviços a empresas estatais, e estas seguirão tentando mostrar uma inexistente eficiência. A síntese de tais distorções, consagradas no projeto do relator, é a persistente existência dos famigerados lixões em mais da metade das cidades brasileiras, poluindo a atmosfera e o ambiente urbano, contribuindo para a proliferação de insetos, bactérias, vírus e arboviroses como a dengue, zika, chikungunya e febre amarela e emitindo expressivo volume de gases de efeito-estufa.
Para ser mais exato, há 3.257 lixões espalhados pelo País. Este é o triste resultado da falta de vontade política de numerosos prefeitos que, de tempos em tempos, vão ao Congresso Nacional pedir a prorrogação do prazo para sua erradicação, que venceu em agosto de 2014, conforme prevê a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/10).
Com a “sutil” mudança, que atende a esse ímpeto postergador dos alcaides, o relator impede a livre concorrência na prestação de serviços prioritários. É triste observar que, quando o Brasil está prestes a vencer um grave vício do fisiologismo e do clientelismo, em sintonia com os anseios da sociedade pela transparência, eficiência e ética, surge um deputado para, com uma canetada, promover retrocessos no arcabouço legal.
O novo Marco do Saneamento Básico precisará ser votado novamente no Senado, que já o havia aprovado, devido às alterações introduzidas pela Câmara dos Deputados. Que os senadores pensem mais nos brasileiros, na saúde pública, no meio ambiente e na sustentabilidade, retirando do projeto os entraves à livre concorrência e às licitações no âmbito dos serviços de limpeza urbana, coleta e destinação de resíduos sólidos.
*Luiz Gonzaga Alves, é Diretor-Presidente da ABETRE