FOLHA DE SÃO PAULO – 01/06/2024

Sustentabilidade é palavra gasta e distante do modelo de financiamento da gestão de resíduos sólidos no Brasil, que teve custo direto de R$ 30,5 bilhões em 2020, pressionando os orçamentos municipais que custeiam o serviço em 90% das cidades brasileiras.

Caso o país não faça progressos em gargalos econômicos e ambientais do setor, como o fim dos lixões brasileiros e o aumento de nosso baixo percentual (4%) de reciclagem, esse custo deve aumentar para R$ 42,6 bilhões em 2050.

Os dados são de um estudo feito com exclusividade para a Folha pela consultoria S2F Partners com cálculos do grupo GMWO2024, o mesmo responsável pela análise de dados do relatório Global Waste Management Outlook 2024, lançado no início deste ano pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).

Os custos diretos da gestão de resíduos sólidos urbanos incluem sua coleta e transporte, triagem e alguma reciclagem (apenas 4% dos resíduos são reciclados no Brasil) até a destinação final, feita em aterros sanitários privados. Contratados pelas prefeituras, eles fazem o manejo de toneladas diárias de todo tipo de material descartado pela população.

Levantamento realizado em 2020 pela antiga Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Urbana e Resíduos Especiais (Abrelpe) apontou um saldo histórico e acumulado de R$ 18 bilhões em dívidas de prefeituras de todo o país com as 207 empresas prestadoras de serviço de coleta e manejo de resíduos em território nacional. O setor movimenta cerca de R$ 27 bilhões por ano.

“Como o caminhão passa, e o lixo some, a população tem a percepção equivocada de que é um serviço gratuito”, avalia Carlos da Silva Filho, da S2FPartners e conselheiro da ONU para resíduos. “Os governantes incorporam essa percepção e colocam esses custeio no final da sua lista de pagamentos. Por isso, temos essa dívida acumulada e problemas de má gestão”, explica ele.

Silva Filho, que é o atual presidente da Associação Internacional de Residuos Sólidos (ISWA, na sigla em inglês), afirma que, onde a gestão de resíduos melhor funciona no mundo —tanto do ponto de vista ambiental como econômico—, ela é paga como as outras contas de consumo (água, luz, internet etc.). No caso, quanto mais resíduos gerados, maior a conta de cada um.

“A geração de resíduos tem a ver com o poder aquisitivo: quanto maior ele for, maior o consumo e, portanto, maior a geração de resíduos”, afirma Hugo Nery, diretor-presidente da Marquise Ambiental, empresa que atua no setor há 47 anos no país, com sede no Ceará.

“Nas grandes cidades brasileiras, a classe A produz cerca de 2 quilos de resíduos por pessoa por dia. A classe média, 1,5 quilo. A classe pobre, 600 gramas. Então, não é justo que o governo tire dos impostos comuns para coletar o lixo da população de maior poder aquisitivo em detrimento de serviços básicos para a população mais pobre”, avalia. “O que acontece no Brasil hoje é que o gerador não paga, e isso tudo é custeado pelo Estado.”

Segundo relatório da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), apenas 438 dos 5.570 municípios brasileiros comprovaram ter sistemas de cobrança pelo serviço de manejo de resíduos sólidos urbanos. Trata-se de uma norma do Marco Legal de Saneamento Básico (lei 14.026/2020), e o não cumprimento dela implica restrições no acesso a recursos públicos da União para o setor.

Onde está instituída, de Curitiba a Diadema, Porto Velho a Porto Alegre, a cobrança surge associada ao IPTU (Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana) ou à conta de luz ou de água, mas há casos em que a ela é feita em boleto separado.

Para o economista Ricardo Abramovay, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP, a cobrança por esse serviço é uma questão de justiça distributiva. E ela fica ainda mais aguda quando se comparam resíduos gerados pelas camadas mais pobres da população com empreendimentos que são grandes geradores ou com a própria indústria dos produtos que geram descartes.

“É o princípio do poluidor-pagador. Essa conta tem que cair no colo das empresas, porque é a condição para que elas produzam menos resíduos e incorporem o custo daqueles resíduos incontornáveis nos preços dos produtos”, avalia.

“A experiência europeia é interessante porque as empresas mantêm organizações públicas e não estatais que fazem o trabalho não só de recolhimento dos resíduos sólidos do consumo doméstico mas também o trabalho de publicidade sobre o que você faz com a sua escova de dentes depois que ela não serve mais.” Para ele, é absurdo o poder público ter que montar campanhas quando são as empresas que estão oferecendo isso para a sociedade.

O engenheiro Flávio Ribeiro, consultor em economia circular, diz desconhecer cidade do país que cobre o cidadão pela quantidade de resíduos gerados. “O máximo de variabilidade que a gente vê é graduação conforme a área do imóvel.”

É da Europa também que vêm os principais exemplos de modelos de cobrança pelo serviço

Ribeiro cita o caso da Alemanha, onde contêineres de resíduos de cada casa ou apartamento são pesados por um caminhão tecnológico, que emite a conta para a residência. “O serviço pesa casa a casa e cobra proporcionalmente ao peso que cada um gera. Quanto mais se reciclar, menos se paga”, conta

Já em parte da Bélgica, diz, é preciso usar um saco de lixo padronizado para o descarte de resíduos cujo preço traz embutido um valor para o custeio do sistema de gestão. “Quanto mais você gera, mais sacos compra e, portanto, paga mais. Então, é muito simples. E esse dinheiro vai para um fundo que custeia o sistema.”

Segundo Nery, o serviço de coleta e gestão de resíduos é tão complexo e caro que, mesmo com cobrança de taxas e tarifas, o poder público brasileiro terá de completar os valores. “Um pagamento complementar, não mais o principal.”

Fonte: Folha de São Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/06/cuidar-dos-residuos-que-todos-produzem-custa-caro-quem-paga-essa-conta.shtml#:~:text=Segundo%20Nery%2C%20o%20servi%C3%A7o%20de,%2C%20n%C3%A3o%20mais%20o%20principal.%22