VALOR ECONÔMICO – 24/06/2024

É do saber popular que em uma disputa esportiva intermitente, o movimento inicial, conhecido, como saque, representa uma vantagem, pela oportunidade de “fechar o ponto”, em resposta à contraparte. Isso se aplica também ao processo legislativo federal: regimentalmente, a Casa iniciante tem direito à palavra final. Mas longe de se traduzir em um fair game, a definição do iniciante pode ser objeto de manobras criativas, como a anexação de uma proposta recebida, à uma outra, própria, que tenha alguma proximidade àquela recebida. Seria algo como recomeçar o processo para ter a prerrogativa de “fechar o texto”, com as implicações políticas de tal ato.

Este parece ser o caso do PL 412/2022 de iniciativa do Senado, que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Aprovada e encaminhada à Câmara em outubro de 2023, tal iniciativa foi por lá apensada ao PL 2148/2015, cujo objetivo original era o de reduzir a carga tributária de produtos da economia verde, para ser então aprovado e encaminhado ao Senado, agora na qualidade de Casa revisora. Passado o recesso parlamentar e rebatizado, o PL 182/2024 parece ter encalhado nas águas turvas de um mal-estar entre as Casas, em que todos nós acabamos perdendo.

Para tudo que faz parte de uma nova trajetória do país – ao lado dos marcos legais do hidrogênio verde e do aproveitamento energético offshore (já aprovados), além daqueles em tramitação, como o do combustível do futuro e o da aceleração da transição energética – o do mercado regulado está longe de ter recebido, até agora, um tratamento adequado. Tal afirmação não se restringe simplesmente ao seu conteúdo, mas também à sua forma.

No primeiro caso, além de brindar o operador agropecuário com a prerrogativa de contabilizar ou não suas emissões líquidas, na linha de ampliar o salvo-conduto de suas emissões, concedido pelo Senado, a Câmara promoveu uma inserção estratégica. Ela versa sobre a introdução de alguns dispositivos, em especial metodológicos, para criar uma variação mercadológica do mecanismo REDD+, em uma aposta dupla, para o já combalido mercado voluntário e em programas jurisdicionais, de interesse dos Estados amazônicos.

Como esta inserção vai muito além do conteúdo original, o texto ganhou contornos de uma enorme colcha de retalhos. O artigo 2º do Capítulo I – Disposições Preliminares ilustra a que ponto chegou a complexidade do processo bicameral, a partir do número de considerações da lei (incisos do referido artigo) que saltou de 27 para 37. O que se depreende de sua leitura constitui uma sequência aleatória de títulos (certificados, cotas, créditos) atores (desenvolvedor, gerador, operador, certificador), mecanismos de geração de créditos de carbono (programas e projetos estatais REDD+, não mercado e mercado, programas jurisdicionais e privados REDD+ mercado) dentre outras inúmeras considerações.

A sigla REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), criada na COP13 (2007) passou, ao longo do tempo, a incluir, em países em desenvolvimento, atividades de conservação, manejo sustentável das florestas e aumento de seus estoques, em um processo de adições que deu origem ao REDD+. O REDD+ mercado vem sendo utilizado pelo Brasil em suas relações com outros países, tendo como condicionante seu desempenho na prevenção e controle do desmatamento regional. Ou seja, com base em um indicador claro, metodologicamente consistente e de domínio público. A principal referência dessa relação é o Fundo Amazônia. Antes de abordar o REDD+ que vem sendo praticado pelo mercado voluntário, cabe um parêntese em relação à questão fundiária na Amazônia, que representa um enorme desafio para os institutos estaduais de terra, considerando-se que o quadro regional é de descontrole acentuado da propriedade e mais ainda da regularidade ambiental de imóveis rurais.

Nesse cenário de alto risco fundiário e ambiental, a abordagem REDD+ do mercado voluntário tem sido marcada por uma concentração em área pública: particularmente em terras indígenas, que representam a maior porção de florestas em bom estado de conservação na Amazônia. Seu desempenho se revela em uma Nota da Funai (abril 2024) onde se lê que “Desde o início de 2022, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas vem registrando um aumento expressivo de demandas relacionadas à comercialização de créditos de carbono de terras indígenas com particulares, no âmbito do mercado voluntário de carbono (privado)”. Para mais adiante alertar que “pesam preocupações e dúvidas acerca do potencial lesivo destes contratos ao patrimônio e direitos indígenas garantidos pela Constituição Federal, bem como sobre a qualidade e lisura dos processos de consulta realizados junto às comunidades indígenas interessadas, além da falta de amadurecimento do arcabouço normativo nacional sobre o tema”.

Já segundo análise do think-tank Berkeley Public Policy1. “a lógica do mercado voluntário de carbono é criar um incentivo financeiro para que atores privados encontrem os mais baixos custos de reduções ou remoções de emissões de carbono. Mas todos os tomadores de decisão, envolvidos na criação e uso de créditos de carbono, acabam se beneficiando financeiramente pelo excesso de creditação”.

A perda de credibilidade do mercado voluntário se revela também em um documento do governo americano (maio 2024) intitulado “Voluntary Carbon Markets Joint Policy Statement and Principles” que, logo de início, fala da relevância de benefícios associados “para sustentar o modo de vida das comunidades locais e conservar os recursos terrestres e aquáticos e a biodiversidade”. Mas haveria um outro fato motivador da Casa Branca, relacionado ao mercado de inteligência artificial, por conta de um incremento significativo no consumo de eletricidade dos seus centros de dados, que deve comprometer o net zero setorial.

Nesse cenário crescente de emissões de grandes empresas, programas jurisdicionais e projetos estatais, realizados sob uma gestão de caráter institucional, implantados em grande escala, de forma integrada e socialmente inclusiva, podem se transformar em oportunidades de investimento para o cidadão comum. Afinal, nada mais justo que a remuneração do serviço ambiental, prestado pelo capital natural da Amazônia, e sua monetização no mercado global, por meio do mercado de capitais, possa ser devidamente partilhada com o povo brasileiro.

1. Quality Assessment of REDD+ Carbon Credit Projects” Berkeley Public Policy, The Goldman School, September 15, 2023.

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/rotas-tortuosas-do-mercado-de-carbono.ghtml